| BIBLIOGRAFIA |
[Bolero]

Capa de Aloísio Neves
340 páginas
1ª Edição - 1985
Editora Rocco

Bolero

Comentários Críticos

Carlos Alberto Mattos, Jornal do País, julho de 1985
Sete anos um homem espera no corredor da maternidade. Em vez de receber a mulher de volta e o filho, é devolvido sozinho a uma cidade que não mais reconhece, tomada por forças opressoras e ambientada no absurdo. Dessa situação, digamos, kafkiana, nasce o relato de Bolero, primeiro romance do consagrado contista Victor Giudice. (...) No surpreendente Bolero, Giudice supera-se acrescentando outro elemento: a alegoria política. Prisão, tortura e mudanças de regime vão fazer parte do cotidiano do narrador após sua saída da maternidade(algo como um segundo nascimento), defrontando-o com os estertores de uma monarquia e o advento de uma Nova República. Para contar as "histórias mil que a História esconde", o autor arma-se de coragem e rebuscada munição simbólica, driblando, a um só tempo, armadilhas ideológicas e convenções narrativas. Fazendo o relato desaguar no seio de uma exótica família, centro de um grupo social muito característico da velha ordem, ele põe-se a demolir as estruturas de poder a golpes cáusticos de ironia. Não apenas o poder institucional, mas também o econômico, o das elites culturais e todos os podres poderes disseminados no tecido social. Como qualquer obra identificada com as tendências contemporâneas, Bolero lança mão de uma geografia difusa, cambiante, germinada da pura imaginação. Ainda assim, estão claras as alusões às democracias frágeis, sujeitas a interrupções de primeiro-de-abril. Em particular, contempla-se sob a lona do circo ficcional o Brasil do pesadelo ditatorial, das desigualdades profundas e das falsas mudanças. Tudo, porém, muito distante do modelo de literatura engajada que chafurda no óbvio e repete-se indefinidamente. O terreno de Giudice é o da invenção permanente. No livro, o ato da criação está expresso, de forma brilhante e comovente, na história de um palhaço que produzia bolas de prata no picadeiro usando somente a força da imaginação. A parábola, relatada por um prisioneiro, ilustra bem a idéia dominante no romance: o pensamento como liberdade supremas, reduto derradeiro de dignidade, fonte de redenção e de humanização. Nesse terceiro livro, a energia criadora de Giudice parece inesgotável.

Valentim Facioli, crítico literário e professor da USP
O arriscado projeto de Victor Giudice de narrar "histórias mil que a História esconde" consolida-se num romance circense e sério a um tempo. A farsa da dominação, dramática e histriônica, realiza-se na alegoria do funcionamento do circo, onde tudo é ficção porque é realidade, pois ali está engendrada a verdade que só a técnica narrativa mais apurada é capaz de revelar. No circo estão quase todas as personagens, e cada uma delas é o seu discurso; assim, participam da "função" como falas e ações a revelarem as intenções e os efeitos, de superfície ou de profundidade, de suas ambições e interesses, escamoteados ou não, vivendo as múltiplas facetas da linguagem que constroem e as constrói. É uma experiência de linguagem que se faz história com as artes do narrar.(...) O leitor tem diante de si um bizarro logogrifo literário, sério, circense, dramático, histrião; da mais intensa atualidade e permanência enquanto a história for a pré-história do Grande Circo burguês. Além do mais, tem a graça, a leveza e a malícia das grandes obras. Encarna e reencarna as mutações da culpa e do prazer, constituídos como contradição viva na sociedade dividida e hipócrita.

Mauro Gama, Suplemento Literário do Minas Gerais, fevereiro de 1986
Trata-se de uma proeza sui generis na prosa de ficção. A própria classificação, no gênero romance, não nos satisfaz. Giudice, na verdade, monta uma espécie de espetáculo verbal, dividido muito mais em números do que em capítulos. O autor lembrou-nos a expressão eisensteiniana "montagem de atrações". (...) Extremamente culto, fertilizado por um convívio permanente com a música sinfônica e operística, Victor Giudice imprime a sua trama verbal um elevado teor de qualidade rítmica e fonética, o que lhe confere à prosa, por instantes, formulações de poesia. Mas o essencial, na realidade, é o moralismo cético e o humorismo utópico de Giudice, montando sob os rótulos de monarquia e república uma tragicomédia da humanidade deste fim de século.

Lúcia Helena, Fatos - número 21, agosto de 1985
No mundo fantástico de Bolero, os elementos vão sendo pouco a pouco combinados na construção de uma grande metáfora: um circo que não é apenas o circo, mas o próprio mundo metamorfoseado numa representação farsesca. Neste mundo transformado e metafórico, os personagens e as situações alegóricas fazem com que Bolero agilize a corrosão de dois nefastos e dilacerantes tipos de repressão: uma, interna, através da qual cada homem sufoca a força do imaginário e o fluxo do desejo; e outra, externa, expressa nos regimes sociais que amesquinham a liberdade e os homens. Trabalhando também na forma o conteúdo de que trata, Bolero satiriza a estrutura desgastada das narrativas enfastiantes, repetitivas, e abre um caminho novo e desafiador.

Lúcia Helena, O Estado de São Paulo, setembro de 1985
Em Bolero, o inusitado se aproxima (o lírico entrecruza-se ao satírico e ao onírico, num texto romanesco) e os episódios se entrelaçam num constelado feixe de sentidos possíveis em que vemos metaforizadas e alegorizadas tanto a condição social quanto a condição existencial de homens submetidos ao domínio da opressão, que não se restringe ao imediatamente político, mas também à incapacidade que os homens têm de conviver com as dimensões absconsas do inconsciente, num mundo de avassalador predomínio da racionalidade. No reino farsesco de Bolero, o mundo é satirizado enquanto representação circense. E nesta sátira se corrói tanto a alienação quanto qualquer tipo de comportamento estereotipado. Vale a pena ver a farsa que se encena em Bolero. Além de estarmos diante de um texto admiravelmente bem escrito.
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