| AS LETRAS |




PARÁBOLA DO JOGO DE XADREZ

(in BOLERO - Editora Rocco, 1985)
[Bolero]

- E daí? O rei mata os enxadristas mas não mata o xadrez. E eu digo isso porque a coisa aconteceu de verdade, e foi o que acabou de uma vez por todas com a Sétima Monarquia,a pior que já se viu por aqui. Felizmente não é do meu tempo, mas minha avó me contava. Perto daquele rei, o diabo era uma velha fritando peixe. Um dia, cismou que o campeão de xadrez estava contra o regime, só porque o sujeito teve a infelicidade de dizer que nenhum rei ficaria de pé se um peão atingisse a sétima casa. Ele tinha acabado de ganhar um final de partida duríssimo contra um mestre estrangeiro. Quando o rei da Sétima tomou conhecimento, foi a conta. Achou que o negócio era com ele, que sétima casa queria dizer Sétima Monarquia, enfim, misturou tudo e achou que devia executar todos os enxadristas da Cidade. Sabe quantos eram? Treze. Pois morreram todos. O mais velho estava com oitenta e nove anos, e o mais moço com quatorze. Agora eu pergunto: foram treze assassinatos inúteis ou foi a salvação da pátria? Mas a desgraça não parou aí. Depois que os treze foram fuzilados, começou a perseguição a tudo que tivesse ligação com o jogo. E você sabe que a burrice dos palacianos não faz por menos. Acendiam fogueiras na praça pública e queimavam tabuleiros junto com vestidos, camisas, blusas, toalhas, lenços, meias, desde que fossem de xadrez. Queimavam peças de verdade e também os piões que os meninos giravam no chão ou os cavalinhos de pau. O bispo da Cidade foi rebaixado, as carruagens passaram a ser puxadas pelas éguas, as torres da igreja foram transformadas em cúpulas, as damas da corte eram tratadas de alteza, pagamentos só em dinheiro vivo, nada de cheques, para não embaralhar com os xeques dos enxadristas. O próprio rei preferia ser chamado de soberano ou monarca, para evitar confusões desagradáveis. E pronto. A corte inteira pensou que depois dessas medidas o problema estivesse liquidado. Mas é como eu dizia, o rei mata os jogadores mas não mata o jogo. Um dia, o pai do tal enxadrista de quatorze anos assassinado pela Sétima trancou-se no sótão com o filho mais novo, desenhou um tabuleiro numa folha de papel de padaria, recortou as trinta e duas peças num pedaço de papelão e ensinou ao moço as regras do xadrez. E não deixou de avisar: tome cuidado, não ensine esse negócio a ninguém que seu irmão morreu por causa disso. Mas você sabe como é a juventude. O rapaz ensinou o jogo à namorada e ela passou o segredo a um primo. Uma noite, os três se reuniram no sótão, acenderam uma vela e disputaram um campeonatozinho de mentira. O primo da moça ganhou e a partir daí ficou viciado. Queria jogar todos os dias e todas as horas. Uma tarde, foi à igreja visitar o tio, o tal bispo que tinha sido rebaixado, e mostrou a ele o movimento das peças. O padre se apaixonou pelo xadrez e ensinou a um fiel. O fiel ensinou a outro. O outro ensinou à mulher, a mulher ensinou à criada, a criada ensinou ao operário, o operário ensinou ao colega, o colega ensinou à prostituta, a prostituta ensinou ao bêbado, o bêbado ensinou ao sóbrio, o sóbrio ensinou ao ladrão, o ladrão ensinou ao policial, o policial ensinou à amante, a amante ensinou ao artista, o artista ensinou ao médico, o médico ensinou ao doente, o doente ensinou ao morto, o morto ensinou ao verme, o verme ensinou à semente, a semente ensinou à terra, a terra ensinou ao vento e o vento ensinou à Cidade. Agora, havia cento e sessenta e nove jogadores prontos a enfrentar qualquer partida. Os primeiros campeonatos de verdade foram disputados na igreja. Enquanto o padre fazia uma prédica sobre o evangelho, os fiéis fechavam as portas, afastavam os bancos e armavam o tabuleiro nos ladrilhos pretos e brancos. As peças eram os santos dos altares: as virgens, os cristos, os apóstolos, os anjos, os centuriões. Mas um ano depois, o número de enxadristas aumentou para dois mil, cento e noventa e sete, e a igreja ficou pequena demais. Então, os jogadores tomaram coragem e se organizaram num grupo clandestino. Cada um levava no bolso um quadradinho de papelão branco ou preto. Quando estavam reunidos, formavam os tabuleiros. Dezesseis pontas de cigarro serviam como peões. Dois isqueiros eram os reis. Duas tampas de caneta, as damas. Os cavalos, quatro brincos. Os bispos, quatro moedas, e as torres eram representadas por quatro caixas de fósforos. E jogavam. Jogavam até sentir que a liberdade se resumia no prazer de um xeque-mate na estupidez monárquica. E o número de enxadristas aumentava. De manhã, se alguém passasse pelo parque ou pela praça da Cidade e visse as donas-de-casa com seus berços, sentadas nos bancos, contando as façanhas dos filhos ou trocando receitas, não perceberia que havia oito mães e oito berços de cada lado recebendo ordens de dois jogadores que fingiam passear pela praça. As vezes, um deles se aproximava de uma das mulheres e se queixava do calor. A mulher trocava de lugar e a partida prosseguia. No final, a Cidade se transformara num gigantesco tabuleiro. Não havia um só habitante, pobre ou rico, preto ou branco, velho ou moço, que não conhecesse as regras do xadrez, com todas as aberturas, variantes, subvariantes e finais. Um povo composto de quatro milhões, quinhentos e vinte e seis mil, oitocentos e nove campeões.

Foi quando o rei descobriu tudo. Um oficial da Guarda ouviu palavras estranhas numa discussão entre dois auxiliares, achou que era um código e foi consultar um marechal-de-campo. O velho ficou apoplético: Isto é xadrez! Os dois auxiliares foram presos e confessaram que a Cidade era o tabuleiro do povo. Na manhã seguinte a notícia estava no ar. Os sessenta e quatro quarteirões que se estendiam em frente ao palácio real pareciam desertos. A cavalaria saiu para uma inspeção e percebeu que nas dezesseis quadras formadas pelas duas últimas ruas havia dezesseis jogadores imóveis, em posição de ataque. Ao ver os cavalos da Guarda, o enxadrista mais velho gritou: Peão quatro do rei! Os soldados não entenderam. Voltaram ao palácio e contaram o fato ao marechal-de-campo. O militar dispôs dezesseis oficiais na mesma posição dos enxadristas e pensou: vamos ver quem joga melhor. E ordenou: Peão quatro do bispo da dama! Montou a cavalo, galopou até o ponto em que se encontrava o soldado que correspondia ao peão da dama, ergueu a espada e soltou uma descompostura: Você, seu idiota! Trate de marchar esta quadra, saltar a outra e se colocar lá adiante, na seguinte! O oficial obedeceu. Quando o campeão do povo tomou conhecimento da jogada real, não teve dúvidas: jogou cavalo três do bispo do rei. O marechal-de-campo respondeu com cavalo três do bispo da dama e a partida não parou mais. Durou treze dias. Os jogadores da Cidade, que representavam as peças brancas, viram tombar três peões, dois bispos e a dama. Porém, o exército da Sétima Monarquia, que jogava com as pretas, perdeu quatro peões, um bispo, um cavalo, a dama e a partida. Depois do xeque-mate, o corpo do rei foi sepultado sem as honras de praxe.

No dia seguinte, o povo inteiro jogava xadrez nos botequins, praças e bordéis, enquanto cantava em altas vozes: O céu da República será mais azul.

[Victor Giudice] [Alto da Página]