[A ficção parece absurda porque é a realidade despojada de todas as mentiras.]

[Autógrafo]

[Victor Giudice]



Inglês

AS LETRAS






Início fulminante


A personalidade de Victor Giudice pode ser rastreada através dos vestígios autobiográficos deixados em sua obra literária. Ele foi a própria materialização, declarada ou subentendida, de personagens como o ser mutante do conto O homem geográfico, a filha mesmerizada pelos mistérios familiares de Minha mãe, o solitário apaixonado por Haydn em A criação: efemérides, o avô que declamava trancado na sala de banho em Os banheiros ou o narrador do inacabado Do catálogo de flores.
Sua primeira oportunidade de publicação surgiu em 1969, quando o escritor José Louzeiro, que à época editava o Jornal do escritor, publicou
O banquete, também o primeiro de seus minicontos, formato que ele iria sofisticar progressivamente nos anos vindouros. Por pouco Louzeiro não teria salvo outras centenas de páginas datilografadas, que Giudice havia deitado fora alguns dias antes, por julgá-las imprestáveis.
O segundo conto publicado, In perpetuum, é protagonizado por um funcionário de banco que passa 30 anos procurando uma diferença de 10 centavos. Nascia ali uma das principais vertentes da criação literária de Giudice, alimentada por suas experiências como funcionário do Banco do Brasil por mais de 20 anos (ver A Vida). Esta é a matéria-prima também de O Arquivo, um dos contos brasileiros mais conhecidos internacionalmente, editado em oito países.
O Arquivo abre o primeiro volume de contos de Victor Giudice, Necrológio (1972), começando já na capa do livro. Victor não queria perder tempo nesse fulminante início de carreira como escritor. O livro ganhou uma recepção entusiástica por parte da crítica. Experimental e ousado, submetia o texto a uma feroz segmentação, usava o espaço da página com invenções concretistas e propunha um texto polifônico, onde se podia "ouvir" uma instigante simultaneidade de "vozes". O conto Carta a Estocolmo viria a ser publicado na prestigiosa revista Antaeus (inverno 1983, Nova York), ao lado de um texto de Gabrielle D'Annunzio, e considerado um dos dez melhores relatos de ficção científica aparecidos naquele ano nos EUA.
[Alto da Página] A afirmação em três livros Apesar do sucesso da estréia, Giudice levaria sete cabalísticos anos para trazer a público o seu segundo livro, Os banheiros, de 1979. O Brasil vivia então o apogeu do contismo. Caio Fernando Abreu saudou, numa resenha da revista Veja, a consagração de Giudice "definitivamente, como um dos nomes mais expressivos da ficção brasileira contemporânea". Esse livro deixava clara a paixão de Giudice pelo conto policial, o seu fascínio pelos mecanismos do gênero. Esta matriz estaria subjacente a grande parte de sua obra. No início da carreira, ele havia publicado contos no Mistério Magazine de Ellery Queen. Foi também organizador da Coleção Enigma, de livros policiais, da Editora José Olympio.
A Narrativa do número um, incluída em Os banheiros, era, na verdade, um trailer do romance Bolero, que Giudice traria à luz em 1985. Um palhaço que consegue produzir esferas de prata somente com a força da imaginação assume ares de metáfora para a força do pensamento contra a ordem opressiva e a dominação. O Brasil começava a sair da ditadura e Giudice nos dava um romance caudaloso (veja trecho), lidando sem panfletarismo com o Brasil do pesadelo militar, das desigualdades profundas e das falsas mudanças. Para o crítico Valentim Facioli, o leitor tinha "diante de si um bizarro logogrifo literário, sério, circense, dramático, histrião; da mais intensa atualidade e permanência enquanto a história for a pré-história do Grande Circo burguês".
Em 1989, Giudice retornou ao terreno dos contos com Salvador janta no Lamas, distinguido com o prêmio anual da Associação Paulista de Críticos de Arte na categoria de ficção. Os contos desse volume apresentam um estilo extremamente visual, nos limites do argumento de cinema. O homem geográfico poderia figurar numa antologia do corte (no sentido cinematográfico do termo); Bolívar nada mais é que um pequeno filme policial em que, significativamente, o cinema é repetidamente citado. As palavras, ali, tinham a generosidade e o desespero de se darem a ver, de se deixarem sentir.Salvador consolidava, ainda, dois traços de estilo que o escritor importava de sua própria vida: as referências recorrentes ao plano concreto da cidade (antecipando, de certa maneira, Paul Auster em relação a Nova York) e, já a partir do desenho da capa - o tarô na mesa de bar -, a atração pelo esoterismo (ver Vida).
[Alto da Página] Maturidade premiada Estava pavimentado o caminho para aquela que muitos consideram a obra-prima de Victor Giudice: O museu Darbot e outros mistérios ( e edição). Temos aí nove contos primorosos, que revelam um escritor no pleno domínio de seu ofício. Para eles parecem convergir todos os rumos da ficção giudiciana: a fantasia familiar (A única vez, A história que meu pai não contou), as obsessões do culto à arte (A criação: efemérides, O museu Darbot), o mistério introjetado no cotidiano (Cavalos), a narrativa policial (Jurisprudência), a metáfora política (O hotel), a sátira de uma nobreza imaginária (A festa de Natal da Condessa Gamiani) e o miniconto (Relatividade em nome de Borges). O livro mereceu a maior distinção literária do país, o Prêmio Jabuti de 1995, conferido pela Câmara Brasileira do Livro.
Se Bolero havia sido gestado ao longo de sete anos e tivera vários fragmentos publicados previamente, o segundo romance de Giudice seria escrito num só jato, em não mais que 52 dias. A trama de O sétimo punhal, de 1995, era assim apresentada pela poeta Susana Vargas na orelha do livro: "Uma mulher às voltas com seis crimes (ou seriam quatro?) e um casamento de muitos anos. Um criminoso a bordo de um Monza cinza e a cinzenta história de um estranho namoro". Em O sétimo punhal,, o escritor atinge a maturidade no uso dos ingredientes da história policial, gênero relativamente raro no Brasil, do qual ele se firmou como um dos melhores cultores.
Giudice deixou inacabado o seu terceiro romance, Do catálogo de flores, que colocava um escritor brasileiro septuagenário no centro de uma trama misteriosa na Londres do ano 2018. O escritor tinha sido o único amigo de um certo Pedro Maravella, poeta brasileiro desconhecido que escrevia, no século anterior, uma série de poemas denominada Catálogo de flores. Descobre-se, então, uma estranha relação entre os sonetos de Maravella e as pesquisas científicas desenvolvidas por uma fundação britânica. "A história mostra de que modo uma fraude pode indicar o caminho da verdade", definia o autor numa sinopse.
[Alto da Página] Poesia, teatro, crítica Os sonetos de Maravella nada mais são que um eco do próprio Victor Giudice poeta. Entre um livro e outro, Giudice mantinha uma produção marginal de sonetos, a maioria desconhecidos do público leitor e mesmo de seus amigos mais íntimos. Nas décadas de 80 e 90, ele participou com amigos de uma espécie de arcádia, em que toda a correspondência se dava em sonetos de versos decassílabos. Seu pseudônimo não escondia eficientemente o autor: Judicis Marinus. A uma série de fundo social ele deu o sonoro título de Sonetos do operário e do patrão.
Giudice produziu também para teatro, refletindo outra de suas grandes paixões. Em 1991, o Centro Cultural Banco do Brasil montou seu monólogo Ária de serviço, com direção de Marco Antonio Braz e a atriz Bete Mendes no papel da dona de casa infeliz que prepara o espírito para receber o marido ao final de um dia de trabalho. Teve seu conto Bolívar encenado por Domingos Oliveira na Biblioteca Nacional dentro do evento Teatro do texto, em 1991, e fez uma adaptação do Don Juan, de Molière, para alunos da Uni-Rio. Exercitou-se, ainda, como compositor de trilhas musicais para teatro (ver A Música). Giudice deixou inédito o texto da peça O baile das sete máscaras, mais uma investida demolidora no universo burguês a que ele próprio pertencia à sua maneira peculiar.
O crítico e ensaísta literário surgiu na década de 1970 em jornais do Rio de Janeiro. Carlos Drummond de Andrade costumava mandar-lhe bilhetes agradecendo suas resenhas. Escritores como Machado de Assis, Arthur Schnitzler e o dramaturgo Nelson Rodrigues foram objeto de iluminados ensaios. Mas esta foi uma carreira bissexta, caracterizada basicamente pelo seu prazer de ler e pela independência de suas opiniões. Esta última qualidade rendeu-lhe, pelo menos uma vez, uma represália. Em julho de 1988, ele publicou em O Globo uma resenha irônica com relação ao sucesso de um best seller da mesma editora que à época examinava seus originais da coletânea de contos O último coração da noite. No dia seguinte, a editora devolveu-lhe os textos com uma carta seca de indeferimento. O livro acabaria saindo no ano seguinte, pela José Olympio Editora, com o título de Salvador janta no Lamas .
Para um escritor que tematizava as hipocrisias e disfunções da sociedade contemporânea, episódios como esse não representavam maior percalço. Pelo contrário, traziam novas idéias que ele rapidamente levava ao papel. Em Victor Giudice, a vida e o ofício bebiam da mesma fonte. [Alto da Página]