[Estarei só, num raio estereofônico ouvindo Brahms.]
[Autógrafo]
[Victor Giudice]



Inglês

A MÚSICA






Primeiros sons

Victor Giudice foi durante toda a vida um músico amador. Amador no sentido empregado por Antonin Artaud: aquele que produz porque ama ou sente dor. Seu envolvimento apaixonado com a música ditava-lhe as preferências artísticas, o comportamento e a sua própria visão de mundo. As formas perfeitas, para ele, teriam obrigatoriamente o ritmo, a progressão e a emoção de uma sinfonia, uma sonata etc.
Suas memórias mais remotas relacionavam-se com os concertos assistidos na infância - ou o encantamento com a trilha sonora dos filmes e seriados, como se vê no
texto autobiográfico que ele produziu para um curso sobre música sinfônica. A nostálgica canção Paese mio, entoada no filme Rocco e seus irmãos, de Luchino Visconti, levava-o facilmente às lágrimas.
Quando adolescente, freqüentou o programa de calouros de Ary Barroso na televisão, ganhando notas máximas para sua dublagem da melodramática interpretação de Al Jolson na canção My Mammy, ou a performance ao piano na Canção da pulga, de Mussorgsky. Da primeira vez, ele foi porque os amigos duvidaram. Da segunda, porque Ary Barroso pediu insistentemente. Só a necessidade precoce de ajudar no sustento da família o impediu de perseverar na carreira de músico.
Sua memória prodigiosa armazenava partituras inteiras de sinfonias e óperas, que ele era capaz de reger em saraus domésticos. Além disso, tinha uma voz de tenor nada desprezível.
De percepção eminentemente sinestésica, Giudice via imagens na música e música nas imagens. As influências da ópera no cinema foram uma de suas fixações temáticas (veja trecho de ensaio sobre o assunto, publicado na Folha de São Paulo). Esta característica iria mesmo refletir-se na sua escrita, o que não passou despercebido, por exemplo, ao poeta, escritor e crítico literário Gastão de Holanda, que viu no conto A lei do silêncio uma paráfrase do Mikrokosmos, estudos para piano de Béla Bartók.

[Alto da Página] Formador de platéias
Somente nos anos 90 ele teria a oportunidade de fazer uso público do conhecimento musical que acumulou desde a infância freqüentando temporadas líricas, devorando livros e colecionando discos, partituras e vídeos de música clássica e ópera. Inicialmente no Centro Cultural Banco do Brasil e depois em diversas instituições do Rio, ele ministrou cursos de introdução à ópera, sobre o papel da música sinfônica na civilização ocidental e sobre a obra do compositor Richard Wagner, que dividia com Mahler, Liszt, Brahms, Mozart e Beethoven o seu panteão da genialidade musical. Para o CCBB, ele faria ainda um seminal trabalho de orientação à programação de óperas em vídeo, contribuindo, com palestras magnetizantes, para a formação de platéias.
Em 1994, Giudice sucedeu a Ronaldo Miranda - que assumia a direção da Sala Cecília Meirelles - como crítico de música erudita do Jornal do Brasil. Também aí ele praticou um estilo próprio, combinando a análise eminentemente técnica de performances e composições com o recurso ao humor e à fabulação. Num ambiente dominado pelo conservadorismo, tinha a ousadia de defender "leituras novas" contra o "desgaste das repetições". Generoso sem ser permissivo, não temia a convivência amigável com os músicos, o que resultou num dos exemplos de convívio mais harmoniosos entre artistas e críticos nesse millieu.
Na fase da doença, quando foi preciso contribuir para sua recuperação ou, mais tarde, homenagear sua memória, vários músicos de expressão se prontificaram a fazer emocionantes concertos, entre eles os violoncelistas Paulo e Ricardo Santoro, a flautista Laura Rónai, o organista Samuel Kardos e os cantores Ruth Staerke e Eliomar Nascimento.
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Samba e teatro
Também na música, a versatilidade de Victor Giudice foi nota dominante. O professor de Wagner e crítico respeitado era ao mesmo tempo o compositor de sambas que chegou a ser convidado para integrar a ala de compositores da Escola de Samba Unidos de Vila Isabel. É bem verdade que as letras de seus sambas-enredo costumavam ser mais sofisticadas que a média do gênero, mas as músicas, compostas ao violão, são genuinamente populares e, como tal, irretocáveis.
A ribalta o atraiu esporadicamente na qualidade de compositor de trilhas sonoras para peças teatrais. Em 1990, ele chegou a subir ao palco para tocar sua trilha pianística ao vivo na montagem de Prometeus pelo grupo Mergulho no Trágico, no teatro do Espaço Cultural Sérgio Porto. Pouco depois, quando o compositor americano Philip Glass preparava-se para um concerto no CCBB, coube a Victor testar o piano. Ele tocou, então, o Tango de Prometeu, roubando a cena do ensaio. Glass o aplaudiu. Giudice merecia mesmo todos os aplausos.
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